...A pontuação é a respiração da frase e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar! ...

domingo, 18 de outubro de 2009

...De um longo amor podem nascer filhos e seus filhos,
uma casa, ensinamentos, alegria e dor – como em todas as vidas.
Nós nascemos de tudo isso.
Mesmo depois que os anos varreram a vida,
o que foi bom pode permanecer – não como uma sombra ou um peso,
mas como motivo de voltar a desabrochar.
Passado o primeiro horror da morte
com a sensação de tamanha impotência e vazio,
começam a abrir-se frestas por onde a antiga claridade se derrama no agora.
Essa mesa nessa sala,
esse filho e aquele amigo,
esse som no piano,
o ramo de árvore que a gente pretendia cortar,
a calçada
onde caminhava há muitos anos – tudo nos convoca:
não para chorar o passado,
mas para projetar no presente o que,
tendo sido bom,
nunca se perde.
E a gente vai tomando consciência de que
deve aos amores que teve,
aos amigos que esqueceu,
à casa vendida junto com parte da infância,
poder viver melhor outra vez,
com outra pessoa ou sozinha,
em outra casa, com outros amigos,
com novos objetos no meio dos antigos.
Das coisas boas e belas que acabaram
nos vêm sempre uma luz e uma capacidade
de ver o mais banal com algum encantamento.
Essa é a secreta mirada que todo mundo pode ter,
mas que o acúmulo de compromissos,
o excesso de deveres,
a exigência de sermos cada vez mais
competentes e eficazes,
talvez nos roube um pouco.
Esse secreto olhar cada um
pode deixar vir à tona.
.
.
Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor,
com mais paciência
e não menos ardor,
a entender-tese precisas,
a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobre
tudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
.
.
Foram-se os amores que tive
ou me tiveram.
Partiram num cortejo silencioso e iluminado.
a solidão me ensinaa não acreditar na morte
nem demais na vida :
cultivo segredos num jardim onde estamos eu,
os sonhos idos,
os velhos amores e os seus recados,
e os olhos deles que ainda brilham
como pedras de cor
entre as raízes.
Lya Luft

Um comentário:

  1. Comungamos do mesmo gosto,assim como você,também adoro Lya Lut,no meu blog tenho catalógado por ordem de publicação,todas as Crônicas que ela escreve e escreveu, para "Revista Veja"
    Beijão

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